Grande parte dos pós-graduandos em design sente que o método atravanca a pesquisa. Na vivência deles, todas as descobertas da pesquisa acontecem sem método, num processo improvisado (ou até caótico, nos piores casos). O método aparece, então, quando é preciso enfiar nos moldes acadêmicos aquilo tudo que foi descoberto. Se o trabalho de pesquisa acontece assim, o pesquisador está subjugado à academia, e o método é algo que ele é obrigado a aceitar. Como se não bastasse, isso implica que o pesquisador tem pouca margem para adaptar o método aos objetos da sua pesquisa, o que aumenta ainda mais a sua inconveniência.
Para que seja possível desenvolver o campo da pesquisa em design, é preciso que os pesquisadores se reapropriem do método de pesquisa, mas isso vai contra padrões profundamente enraizados no campo do design.
Enquanto em outros ramos profissionais a pesquisa e a prática representam duas atividades claramente separadas, no design elas estão atreladas. Por exemplo, na medicina é muito diferente tratar uma doença e fazer pesquisas sobre a mesma doença. No primeiro caso, existe um paciente doente, e restaurar a saúde dele é o objetivo fundamental do médico. Se ao longo do processo forem descobertas novas informações sobre a doença, ótimo, mas é imprescindível que a busca por informações não interfira com o tratamento. Já na pesquisa a coisa se inverte: o objetivo é entender a doença e pode até ser preciso contaminar uma cobaia para isso (claro, respeitando todas as ressalvas éticas).
No campo do design, não é assim. Um designer praticante precisa fazer pesquisas para coletar as informações que vão embasar os projetos. Logo, o objetivo da pesquisa e o objetivo do projeto são o mesmo. O método de pesquisa está submetido aos mesmos requerimentos que o projeto como um todo, e não é preciso justificar a validade da pesquisa, já que o sucesso do projeto em si é uma prova das descobertas.

Essa pesquisa que acontece dentro de um projeto pode ter um foco muito específico (ex. ‘Que madeiras produzidas sustentavelmente estão disponíveis em um determinado parque industrial?’ – ‘Que fontes renderizam mais rápido em dispositivos móveis?’), ou pode abarcar questões mais complicadas (ex. ‘Como a seleção de fotos de arquivo reforça estereótipos corporais problemáticos?’ – ‘Quais são as tendências de cores num determinado nicho do mercado de mobiliário?’), ou pode até arriscar abordagens especulativas (ex. ‘Como a altura do encosto de uma cadeira de escritório codifica demonstrações de status e afeta dinâmicas de poder?’ – ‘Existe influência das culturas nativas na identidade visual brasileira?’). Conforme o foco dessa pesquisa vai se ampliando, a pesquisa vai se tornando menos factual, menos baseada em dados. Isso não é um problema, porque até mesmo informações aleatórias podem servir de inspiração para um projeto – elas são úteis e ajudam a criar, embora não tenham ‘aplicação’ em nenhum sentido específico.

Porém, conforme a pesquisa se torna mais especulativa, ela também perde o caráter metodológico, adotando procedimentos mais improvisados (ad hoc). A relação entre os objetivos de pesquisa e os dados levantados deixa de ser direta, proposital, e por isso a pesquisa passa a se basear em achismos.
O pesquisador tem uma noção mais ou menos definida, mas ela não é suficiente para explicar o tema pesquisado, e o designer tira suas conclusões do… sabe-se lá de onde.
Outro modo de encarar essa variação do foco da pesquisa é como uma delimitação de objeto. Quando uma pesquisa delimita bem seu objeto de pesquisa, ela ganha foco e isso permite levantar fatos concretos. Ela visa gerar dados altamente confiáveis, mas daí a aplicabilidade desses dados fica fora do seu recorte. (Por exemplo, ela vai descobrir que a madeira tal tem essas e aquelas características, mas não vai dizer qual madeira deve ser usada para uma determinada cadeira; vai determinar qual a latência de renderização das diversas fontes, mas não qual fonte deve ser escolhida – essas deixam de ser questões de pesquisa e passam a ser questões de proposta.) E, por isso, para obter aplicação, a pesquisa feita dentro de um projeto é obrigada a inflacionar seu objeto de pesquisa, e com isso abrir mão de algum grau de confiabilidade.
No longo prazo, uma série de pesquisas realizadas com objetos de pesquisa rigorosamente definidos podem se juntar, formando uma «tradição de pesquisa» que trata de objetos muito mais amplos sem perder a confiabilidade, utilizando métodos factuais, porque agrupa muitas pesquisas individuais. A partir de uma série gigantesca de estudos com microorganismos, temos hoje uma farmacologia capaz de tratar todo tipo de patógenos, por exemplo. Porém esse tipo de pesquisa excede os limites de qualquer projeto, exigindo tempo e recursos praticamente infinitos.
O designer experiente vai ser capaz de conjugar essas duas tendências da pesquisa, obtendo dados que são confiáveis o suficiente e abrangentes o suficiente, sem se perder nem no excesso de especificidade nem em elucubrações teóricas desnecessárias. Esse é um equilíbrio delicado porém possível, que torna o trabalho de projeto bastante satisfatório para o designer. Mas este equilíbrio não elimina o problema da inflação do objeto de pesquisa. Numa pesquisa focada, o objeto de pesquisa não é o mesmo que o objeto de projeto, mas apenas um aspecto dele, uma parte claramente delimitada ou ‘recortada’ para possibilitar a coleta de dados (e o método).
Por exemplo, a madeira usada para construir uma cadeira ao invés da cadeira em si; a legibilidade ao invés da fonte. Em pesquisas mais exploratórias, o objeto de pesquisa vai além do objeto de projeto, abrangendo seu contexto de uso e cultural. Por exemplo, a ergonomia do sentar ou a teoria da comunicação. Esse recorte expansivo (que na prática é uma falta de recorte) requer uma interpretação ousada dos dados obtidos. Ou seja, conforme o objeto de pesquisa vai se inflacionando, o trabalho de projeto vai se tornando mais especulativo, e portanto mais arriscado. O problema é que a prática de incorporar pesquisas dentro dos projetos dá uma sensação de confiança – que vem de uma ilusão de certeza. O projetista acaba achando que compreende a verdadeira natureza do seu objeto de projeto – como se ele fosse um objeto de pesquisa. O projetista está criando uma forma, mas a impressão subjetiva é como se ele descobrisse uma forma que ‘já estava lá’, como se ela fosse uma ‘verdade’ independente.
A contradição dessa inflação dos objetos se reflete, em caricatura, na atitude do ‘deusigner’, que apresenta suas propostas como se fossem iluminações divinas, geradas pelo contato com uma verdade maior, como se o designer fosse o único a conhecer a natureza fundamental daquilo que ele projeta.
A ilusão de certeza do projeto é claramente contradita pelo fato de que designers diferentes obtêm resultados diferentes frente a requisitos de projetos iguais, muito apesar de todos os designers envolvidos passarem pela mesma sensação de estarem ‘descobrindo’ uma solução que ‘já estava lá’, implicada pelos requisitos de projeto. Este é um fato muito importante do campo do design, que certamente não recebe tanta atenção quanto devia.
Profissionalmente, a inflação dos objetos de pesquisa pode ser combatida com a adoção do experimentalismo, onde assumir a incerteza do resultado ajuda a evitar a ilusão de certeza. Porém, na pós-graduação a questão é mais complicada, pois a produção de conhecimento passa a ser um objetivo primário ao invés de secundário. Na pós, é preciso justificar a pesquisa. Se antes as descobertas de pesquisa tinham valor se (e somente se) ajudassem a realização do projeto, na pós elas precisam ter valor em si mesmas, e isso reforça a tentação de inflacionar o objeto de pesquisa.
As pesquisas claramente delimitadas, que adotam como objeto de pesquisa algum elemento de um projeto, são insuficientes para pesquisas acadêmicas. Uma dissertação ou tese requerem algo a mais, porém as instituições ainda não definiram o que vem a ser esse algo (ainda mais se forem consideradas as instituições internacionais, sujeitas a leis educacionais de diferentes países). A busca desse algo que amplie as pesquisas leva quase inevitavelmente à inflação dos objetos de pesquisa, porque a ampliação da pesquisa atrelada a projetos é uma atividade especulativa, que tenta expandir os limites do objeto (seja de pesquisa, seja de projeto).
Para piorar, essa inflação tende a eliminar justamente o tipo de pesquisa mais factual e baseado em dados, que costuma ser mais valorizado na academia. Assim, não é surpreendente que pesquisadores em design tenham uma relação conflituosa com o método.
Uma reação comum do pós-graduando, quando sente que está recaindo no achismo e quer fugir da especulação, é tentar o tempo inteiro criar ‘soluções’ para a pesquisa – como se ela fosse um projeto. Na prática profissional, a realização do projeto funciona como justificativa para a pesquisa, então os designers descambam nisso, mas na academia isso não funciona, porque uma banca de mestrado ou doutorado não vai avaliar apenas o projeto, mas toda a pesquisa, e aí as soluções são apenas uma coisa a mais que pode ser criticada, já que outras soluções são possíveis. Se no TCC o avaliador não imagina a solução proposta, isso conta a favor do aluno, como mostra de criatividade. Já numa dissertação, isso conta negativamente, pois evidencia que a pesquisa deixa de fora possibilidades relevantes. E, como designers diferentes dão soluções diferentes para requisitos iguais, é claro que a reação da banca vai ser: “eu faria diferente!”.
O atrelamento de prática e pesquisa no campo do design parece não deixar muitas esperanças, pelo menos sem uma mudança de perspectiva.
Na pós-graduação, os objetivos da pesquisa não são ligados diretamente aos objetivos de um único projeto, como seria o caso da pesquisa profissional. O objetivo de longo prazo do campo de pesquisa como um todo é ampliar o conhecimento sobre design, e isso indiretamente contribuirá com projetos futuros, mas isso não é responsabilidade do pós-graduando. O que ele precisa fazer é criar conhecimentos. E também é possível desenvolver conhecimentos a partir de experiências de projetos mal-sucedidos, do mesmo modo que provocar doenças em uma cobaia pode ser necessário na pesquisa médica. É claro que todo designer vai querer que seu projeto funcione – esse é um padrão profundamente enraizado no campo, é assim que a gente é adestrado. Não é preciso eliminar o sucesso do projeto como objetivo, mas é totalmente indispensável separar ele dos objetivos de pesquisa.
O importante é que a separação dos objetivos facilita a delimitação do objeto de pesquisa. Ou seja, o objeto de uma pesquisa no campo do design é o processo de projeto, e não o resultado desse processo. Esse objeto de pesquisa é menos inflacionado, porque não é preciso especular sobre a aplicação das descobertas de pesquisa, ou sobre se elas funcionam. Basta descrever o que aconteceu. O método passa a ser simplesmente aquilo que usamos para acessar esses acontecimentos, então o pesquisador que adota essa perspectiva pode escolher os métodos que forem mais convenientes e mais adequados.
As consequências dessa mudança de perspectiva são profundas. Pra começar, se o pesquisador deseja descobrir algo sobre se um determinado projeto funciona ou não, ele não poderá terminar sua pesquisa no momento que o projeto terminar (e que o produto for construído), mas vai precisar esperar algum tempo para que o produto seja comprado ou não, para que possíveis falhas se manifestem, para que produtos sucessores adotem características do projeto pesquisado ou as abandonem, e assim por diante. Considerando que alguns produtos podem ter efeitos profundos e de longo prazo na sociedade, essa espera potencialmente teria de ser de muitos anos. É por isso que pesquisas históricas sobre o design parecem adquirir um caráter mais objetivo e factual.
Isso não quer dizer que toda pesquisa sobre design tenha que ser histórica, mas sim que não é papel da pesquisa acadêmica eliminar os riscos de um projeto. Se a pesquisa acaba no fim do processo de projeto, ela não vai tentar prever o futuro, e afirmar se o projeto alcançou objetivos que ainda não se realizaram, mas ela pode falar sobre tudo aquilo que já existe no presente e pode ser observado. Certamente há muitas coisas a descobrir num processo de projeto que ainda está acontecendo.
Só que a pesquisa que os designers estão mais acostumados a fazer, que faz parte de um projeto e que visa coletar informações que subsidiem sua realização, aquela feita no meio profissional, serve exatamente para diminuir os riscos de projeto.
Quem vai para a pós-graduação em design com essa mentalidade tem dificuldade nos objetivos de pesquisa, porque não consegue separá-los dos objetivos de projeto. E é por isso que é preciso desaprender o velho hábito dedar solução pra tudo.
Essa nova forma de pensar a pesquisa, que é ‘sobre design’ ao invés de ser ‘para design’, tem muito mais liberdade de questionamento, e pode-se supor que dará origem a programas de pesquisa mais complexos e interessantes do que os do passado, que não recaiam tanto no achismo.
No entanto, se esse ensaio tentasse prever quais serão esses programas, ele se tornaria inflacionário.
Esse texto foi publicado no segundo número do nosso fanzine!
(Também disponível num arquivo para impressão – booklet).

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